Enquanto ela esperava...

... deliciava-se a escrevinhar histórias por encomenda (interna, externa ou extraterrena)

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Um caso de polícia!

Era uma vez uma pessoa que se perdeu de si própria numa certa manhã de Outono. Havia saído de sua casa bem cedo, ao romper da madrugada e, no meio daquela fabulosa praça cheia de gente, tinha-se afastado brevemente em pensamentos pouco lineares e, sem se ter apercebido como, encontrava-se já na esquadra da polícia local, apresentando queixa do seu misterioso desaparecimento. Como tal podia ter acontecido? Ainda na véspera, enquanto se penteava frente ao espelho quadrado do seu enorme W.C., se tinha reconhecido e admirado “a vida não passa por mim. Continuo estranhamente bela e fresca e ai Jesus! quando em qualquer lugar passo” e agora, aí estava ela, cabisbaixa e envergonhada, procurando respostas para a situação vivida.
O chefe da polícia Teodósio Carlos ouvia pacientemente a mulher que entrara pela porta da esquadra há menos de dez minutos e que discursava desde aí sobre o seu não auto-reconhecimento...
“Peculiar”, pensou Teodósio. “Será que vou conseguir preencher os impressos? Como é que a denomino? É a desaparecida ou a queixosa?”
Enquanto procurava nas gavetas o modelo D, mirava a mulher discretamente. “Ainda não parou de falar... vai ser difícil registar a ocorrência sem a interromper... queixosa... queixa-se, não há duvida... mas quem é que se perde de si próprio?”.
Teodósio Carlos era agora o mirado. A mulher calara-se há 9 segundos e procurava o olhar do chefe de polícia, irritada:
- Não percebe? Não percebe o que está a acontecer?, gritara-lhe.
Teodósio levantou a cabeça:
- Não é preciso gritar, minha senhora. Vamos já tratar da ocorrência.
A mulher olhou-o friamente e o seu rosto serenou no vazio. Olhou para as mãos, que teimavam em agitar-se.
- Sim. Vai tratar da ocorrência.
Calou-se e baixou a cabeça.
Silêncio.
Não havia palavras naquela sala. O único ruído existente parecia ser o do próprio silêncio que incomodava o chefe Teodósio Carlos e a sua momentânea incapacidade de encontrar o modelo D.
Felizmente para Teodósio, uma mosca esvoaçou ao pé da janela. Aturdida pela luz, chocou contra o vidro e suicidou-se à frente da mulher e do chefe TC. O calor era muito naquele compartimento e rapidamente a mosca entrou em combustão espontânea, salpicando o ambiente de um ligeiro odor a destruição.
A mulher fixava o olhar nas mãos, parecendo estar a preparar-se para o depoimento que teria de prestar. Ao longo dos seus 38 anos de vida nunca se tinha perdido de si mesma. Tivera sempre muito cuidado, muita atenção a qualquer descuido, de modo a não ter de passar por essa assustadora experiência. E afinal vivia-a agora, naquela sala fria, com aquele indivíduo grosseiro que se encontrava a vasculhar umas gavetas furiosas de papel desorganizado.
Teodósio Carlos sentia o pensamento da mulher a aquecer a sua ansiedade. O olhar voltado para as mãos reflectia-se na janela e queimava-lhe o cocuruto a dobrar. Percebia uma primeira gota de suor a formar-se na testa e sabia que uma abria sempre caminho a mais gotas de suor e se não se dominasse, depressa começava a lançar um rio sobre o seu pescoço e toda a credibilidade do seu posto podia ser posta em causa e ridicularizada.
- Estão aqui os pró-forma para a queixa!
O chefe levantou a voz de alívio e depressa de envergonhou desta sua reacção.
- Vamos então começar, minha senhora. Nome?
- Andreia. O meu nome é Andreia Cruz, mas já não sou a Andreia Cruz. Não sei quem sou agora. Estava a olhar para uma senhora a vender rosas negras na praça quando me distraí e...
- e?... – o chefe lia rapidamente, para si, o formulário que encontrara nas gavetas, o tal modelo D.
- e... distraí-me e quando voltei já não estava lá... tinha desaparecido!
Silêncio. Teodósio continuava a ler o modelo D.
- O senhor está a ouvir-me? – perguntou a mulher deixando as suas mãos e procurando os olhos de Teodósio – ouviu alguma coisa do que lhe disse ou...
- Calma, não fique nervosa – apressou-se TC a dizer – não estamos com sorte. Este não é o modelo que procuro. Este modelo serve apenas no caso da desaparecida não estar presente... o que não é bem o seu caso.
- É sim. Eu estou-lhe a dizer que não sei de mim! É assim tão difícil perceber isso? Estava a ver as rosas negras e desapareci. Foi a última vez que me vi.
Teodósio Carlos compreendeu então que não devia preencher o modelo D mas sim o modelo M. Era óbvio. Mas onde estaria o modelo M?
Incomodado com a mulher faladora, TC lembrou-se de chamar Miss Gertrudes, a bizarra filha do comissário Pentecostes que se encontrava a “estagiar” na esquadra durante as suas férias de verão, para “não se tentar por maus caminhos” (palavras do pai Pentecostes).
- Só um momento, Sô Dona Cruz – TC levantou-se enquanto falava com a mulher – vou chamar a minha assistente para registar a ocorrência.
“Talvez se entendam... aquela mulher deixa-me mal... malditas ocorrências”

Gertrudes encontrava-se deitada da poltrona do comissário Pentecostes, com os pés em cima da secretária, pintando languidamente uma, outra, outra ainda e mais outra unha do seu pé esquerdo. A tradicional 5.ª unha do pé esquerdo não se encontrava. Tinha ido passear para a praia numa geleira, em companhia do respectivo dedo do pé. “Uns anarcas”, pensava Gertrudes.
Subitamente a porta do gabinete abriu-se e o chefe TC entrou de rompante. Ao ver os pés desnudos da filha do patrão intimidou-se e voltou a sair da sala.
- Toc, toc.

- Diz-me, portanto, a senhora, que se viu pela última vez na praça, pouco antes de avistar a tal vendedora de rosas negras?
Gertrudes vivia o seu grande momento. Longe da praia, do verão, da adolescência interrompida, ensaiava-se como crescida naquela sala de polícia.
- Sim, é verdade, Miss Gertrudes. Foi aí que me perdi.
Gertrudes ainda tinha o modelo M na mão, mas sabia que não ia precisar dele. “Deduzir”, pensou. “Os mestres assim o fazem. Questionam, observam, misturam, chocalham, deduzem! É isso mesmo! Esta mulher foi raptada levianamente por si própria. Exigirei a sua captura”.
Virando-se bruscamente para Andreia:
- Quem é você?
- Sou... – esboçou um laivo de sorriso – já não sei quem sou. Só consigo afirmar que não sei da Andreia Cruz, apesar de estar aqui e de me parecer com ela. É assim tão estranho?
- Não, minha senhora. É muito simples. A senhora sofre de algo como dupla ou tripla personalidade. Eu tenho isso nos pés. É muito angustiante, eu sei. Mas enquanto eu posso disfarçar a minha doença com uns ténis ou botas, a senhora não o pode fazer, porque é muito mais espiritual que físico.
Andreia olhou para aquela rapariga e admirou-a. Um diagnóstico rápido só podia ser um bom prognóstico para a situação.
- Sim, Miss Gertrudes, continue, por favor.
- Vou voltar consigo à praça e vamos repetir os seus últimos passos. Vamos trabalhar em parelha, vamos conseguir encontrá-la. Não se preocupe.
Andreia estava maravilhada.

A fabulosa praça surgiu por detrás do edifício amarelo da esquadra da polícia, porque entretanto, o hospital tinha também ido a banhos e deixara o local.
Era uma praça neo-egípcia, com frescos azulejos pombalinos a resguardarem uma bela fonte de água salgada onde os peixes, caranguejos e moreias coabitavam em harmonia. Num dos cantos da praça estavam as bancadas que pertenciam às vendedoras de flores que todos os dias traziam belas e graciosas plantas do mar para a venda.
Gertrudes viu-a logo. A vendedora de rosas negras sobressaía por ser a mais alta de todas. Media, sem exageros, dois metros e quarenta de altura e no seu cabelo havia restos de gelo devido às baixas temperaturas que se sentiam no norte.
Andreia viu-a logo a seguir. Reconheceu-a pelas rosas negras que tinha na mão, porque, sem dúvida, era uma mulher baixa e insignificante. Facilmente desaparecia numa multidão e nunca mais era avistada. Por estar tão atacada de angústia de perdição, Andreia receara não reconhecer também a vendedora. Felizmente que não fora assim.
- Vamos, Andreia. Força. Estamos próximas do fim. Vamos fazer a reconstituição...
- Vamos lá – Andreia queria muito voltar a estar consigo.

As duas mulheres olhavam para a vendedora.
- Vamos lá, então.
- Vamos.

A sala chorava de chuva pela janela, acompanhando Gertrudes que soluçava dentro:
- Sim, papá. Depois eu olhei para a vendedora de rosas negras e perdi-me...
- Mas estás aqui – o comissário Pentecostes não entendia – estás bem, Truddie. Estás aqui, filha!
- Não sou eu, não sou eu. Eu não sei de mim, pai! Tens de me encontrar! És polícia!!!! Encontra-me!!!!!! – Gertrudes gritava, desesperada!
- Vais falar com o chefe Carlos Teodósio. Ele vai registar a ocorrência e depois podes voltar para casa.
Pentecostes abandonou a sala. “A minha filha está cada vez mais parecida com a mãe... Talvez se entendam...”

Carlos Teodósio entrou de rompante na sala e sorriu quando observou o rosto transfigurado pela dor da filha do patrão. “Coitada, uma miudita tonta...Vamos lá preencher o modelo T e depois voltas para os brinquedos”.

quarta-feira, 4 de abril de 2007

A Fuga

Este texto foi escrito de fugida, por encomenda externa, sensivelmente há pouco tempo atrás...
***
Percebia-se sujo e cansado, apesar de manter um sorriso vivo e urgente. Nem por temer tombar de exaustão, a excitação era menor. Uma sensação dengosa e zen crescia nele à medida que entrava mais fundo. A transgressão deixava-o tonto de prazer, mas tinha de se concentrar...
Ao fim de tanto tempo, reencontrar a sua paz merecida, livrar-se de tudo o que o bloqueava, roubar uma pausa da sua vivência atribulada, usufruir o que ainda lhe restava enquanto homem.
O que fazia não era trivial e a liberdade ainda tardava.
Sentia-se tão diferente do que fora outrora.
Tornara-se um marginal aos olhos dos amigos, por aceitação de normas tolas, porque tinha medo de não se enquadrar, porque Dulcineia lhe parecera um sonho, num sonho que tivera quando ainda acreditava na sua força, no seu valor.
Os anos passaram. Sem permissão, levaram-lhe as certezas. Gestos paralisantes, progressivos, doentes, simplesmente maus, deixaram-no morrer aos poucos, mirrando o seu querer e a sua vontade.

Até que um dia vira aquela imagem. O cenário da evasão tão desejada. Uma ilha qualquer com ordem para mudar.

Assim, de um modo mágico camuflado por uma vidinha normal, Sebastião começara a escavar a sua sorte e o seu destino. Sairia de casa, deixaria a sua mulher tão temida... já nem sabia bem porquê.

Num belo dia de chuva, enquanto Dulcineia ruidosamente sorvia uma coxa de galinha, Sebastião, corajosamente a medo escondeu uma colher.

Seria ela a sua companheira de fuga durante esta sua história de amor próprio.

A colher com que ia cavando o túnel parecia-lhe cada vez mais bela e mesmo a ferrugem que ia tomando conta do brilho prateado não a tornava menos atraente. Sentia-se mais habituado à presença daquele utensílio do que à pele de socalcos da mulher, com quem ainda tinha de dormir e cumprir uma ou outra função matrimonial...

Moral da história:
Entre marido e mulher não se mete a colher...


sexta-feira, 16 de março de 2007

Inauguração

Este texto foi escrito de um sopro, por encomenda externa, sensivelmente há 17 meses atrás...

Copo’s Chronics

A Ana não é alta nem baixa. Afirmo isto porque quando me pega e me leva aos lábios fico a uma altura média em relação à parede, não sendo ela, por isso, gigante ou anã. Uma Portuguesita mediana. Acha-se muito gorda e daí a encher-me tantas vezes de iogurtes líquidos light. É sardenta (no início pensava que estava sujo, mas falando com os outros copos, percebi que eram dela e não minhas as pintinhas que julgava conspurcar o meu vidro).
Mas sei pouco sobre ela. Sei que mudou de casa há pouco tempo e... de vida, acho eu. É tudo novo para a Ana. Há dias em que chega a casa feliz e nesses dias, seja com iogurte líquido ou, mais chique, com um bom vinho tinto, toca-me com as suas mãos cuidadosas e lábios brilhantes e penso eu, que pensa. Reflecte... Os olhos estão sempre bem abertos, a dançar, apesar de ter o rosto sereno. E sorri. Sorri muitas vezes.
Vive sozinha e chega quase todos os dias tarde. Tem andado a dormir pouco, oiço-a a regressar a casa às quinhentas, vinda de um dos variados afazeres em que se envolve, ou de grandes jantares onde, provavelmente, se envolve com outros copos que não eu... (um copo tem de estar preparado para tudo, mas não sei se estou preparado para a Ana). Vive agora com urgência. Urgência de tudo, de sentires, de alegrias, prazeres. Já a senti muito triste e perdida. É a primeira vez que vive só e creio que sente um misto de encantamento e medo, recheado de pingos de solidão.
Acho que está apaixonada, mas não sei se é por alguém ou se é porque acordou de uma sonolência apática e agora está a descobrir e maravilhar-se com o novo velho mundo reencontrado...
Sei que tem muitos amigos mas até hoje conheci poucos. Queixa-se que a sua casa está em desordem e é pequena e por isso não pode trazer ninguém para cá. Confesso que não acredito muito nesta sua desculpa. Penso que, na fase actual, a Ana quer deliciar-se sozinha com o seu espaço. Acho que, após o período de turbilhão emocional pelo qual passou (no qual eu rezava para que ela não me pegasse e deixasse cair, tal era a ansiedade que emanava), está agora a redescobrir-se como pessoa. Como a Ana que teve um passado recente que foi fantástico até deixar de ser bom e que tomou a decisão certa para poder continuar bem o seu futuro... É claro que já a vi agora, apesar de aparentemente contente, um bocadinho chorosa, mas também aprendi a acreditar nela. Num dia, numa hora, num momento, vai perceber e sentir o que realmente deseja para a sua vida. Espero que me surpreenda.
Nem baixa nem alta, mas em mudança. Se a mutação emocional se estender à parte física, estou certo que vai crescer uns cinco centímetros.

Assinado: o copo da Ana